De Bar em Bar entrevista Libby Ginway.

M. Elizabeth (Libby) Ginway é professora associada no Departamento de Estudos de Espanhol e Português da Universidade da Flórida. É autora de Ficção Científica Brasileira: Mitos culturais e nacionalidade no país do futuro (Bucknell, 2004) lançada em português pela Devir no ano 2005. Nesse mesmo ano, ela organizou o simpósio “Latin America Writes Back” sobre a ficção científica latinoamericana, e atualmente está organizando um livro de ensaios em inglês sobre este tema com J. Andrew Brown. Ela já publicou artigos em Brasil/Brazil, Extrapolation, Femspec, Foundation, Hispania, Revista Iberoamericana, com outro na Luso-Brazilian Review por sair. Em maio, com uma bolsa de aperfeiçoamento, viajou ao Chile para assistir um simpósio da narrativa “weird” na América Latina e, em julho, uma coleção de seus ensaios, Visão Alienígena será lançada pela Devir em São Paulo. Embora a ficção científica brasileira seja sua área principal de pesquisa, ela está ampliando seu campo de atuação para incluir a ficção científica de outros países da América Latina. Ela ofereceu uma aula sobre a ficção científica latinoamericana em inglês, e um ensaio baseado nessa experiência aparecerá em Teaching Science Fiction, organizado por Peter Wright e Andy Sawyer, pela Palgrave McMillan.

Embora o ar parecesse parado, podiam-se ver os revoluteios do pó, erguidos por uma leve aragem que soprava discretamente. O céu de profundo azul, sem nenhuma nuvem, e só muito raramente riscado por jatos a grandíssimas altitudes, era uma abóbada recortada no horizonte por montanhas cinzentas.

Uma estrada, a State Route 375, cujo asfalto parecia vir de lugar nenhum e ir a lugar algum, cortava o deserto numa faixa preta empoeirada. Poucos metros distantes dela, um posto de gasolina que qualquer um juraria abandonado. Duas bombas. Uma loja de conveniência cuja porta envidraçada parecia não ver limpeza há longa data.

Numa das bombas, um Chevy 500 de carroçaria amassada e queimada pelo sol parecia aguardar alguém para abastecê-lo.

Mas todo esse cenário não era desabitado. Dentro da loja de conveniência, dois homens e uma mulher observavam ao redor com espanto e certa perplexidade.

— De onde vem essa voz? – perguntou Libby.

— Esse relógio maluco acrescentou um narrador onisciente à história – respondi, batucando o relógio, irritado.

Libby Ginway franziu o cenho, pegou uma caixa de papelão repleta de quinquilharias e latas de cerveja e virou-se, saindo dali.

— Quando aceitei a entrevista, sabia que testemunharia coisas estranhas. Mas essa…

— Eu mesmo sempre me surpreendo com esse maquinismo. Uma vez alterou minha personalidade, acredita nisso? Quase matei… sim… eu quase matei um entrevistado. Foi horrível.

Libby jogou as traquitanas na carroceria, separando, antes, as cervejas. Colocou-as no assoalho do carro. Sentou-se no banco do motorista e ligou o motor.

— Vai ficar aí fora? – perguntou-me com alguma impaciência.

— E para onde vamos? – quis saber.

— Missão secreta – me disse dando um piscar de olhos.

— Gasolina, não vai precisar?

— Abasteci antes de você chegar.

Quando apareci no cenário o narrador onisciente ainda falava da abóbada celeste e das montanhas cinzentas. Caminhei direto para a loja e a encontrei lá dentro. Ela conversava com o homem que a atendia e tive a nítida impressão de que trocavam informações importantes, de tal forma que estavam próximos e pareciam cochichar um ao outro. Libby vestia uma calça jeans, botas de cano longo, camisa xadrez e um boné. Os cabelos estavam soltos. As mãos moviam-se rapidamente, parecia nervosa. Antes que me aproximasse inteiramente, o homem colocou sobre o balcão a caixa de papelão repleta de trastes que para mim pareciam não ter nenhuma serventia.

Abandonei as breves reminiscências e respirei fundo com a nítida impressão de que ficar no posto seria mais prudente. Mas precisava segui-la.

Sentei-me ao lado dela, bati a porta com força moderada e ela não fechou. Um sinal de Libby me mostrou que tinha que erguê-la um pouco se queria vê-la travada. Na segunda tentativa, ela fechou corretamente.

— Cenário inóspito – eu disse enquanto ela dava marcha a ré e voltava para a auto-estrada.

— Deserto de Nevada – ela respondeu.

— Interessante! Perto de Las Vegas, certo? Opa! Dessa vez essa entrevista terá glamour!

Libby riu-se baixinho, acenando com a cabeça em sinal afirmativo. Tive a impressão de que não era exatamente essa a ideia dela.

O deserto se estendia a perder de vista, entremeado por formações rochosas esparsas, pequenas elevações montanhosas, saguaros e árvores Joshua. A State Route 375, também chamada de “extraterrestrial Highway” pouco movimentada, via um Chevy 500 avançando em boa velocidade. A cidade de Rachel já ficara para trás. A seguir, ininterruptamente, desembocaria na State Rote 318, em Crystal Springs, destino que não seria atingido pelo casal intrépido.

— Não tem como desligar essa porcaria? –perguntou Libby enquanto abria uma lata de cerveja e jogava outra para mim.

— O narrador onisciente disse, e não, não dá pra desligar essa porcaria, que Crystal Springs não será atingida… para onde estamos indo? – inquiri, intrigado.

— Desse jeito, como esse “cara” narrando os acontecimentos, não há missão que possa ser bem sucedida, não acha? Jean-Claude Dunyach está certo… fabricação brasileira. Ou pior, paraguaia.

— O relojoeiro parecia oriental – protestei em voz baixa, incerto se isso servia ou não como argumento. Abri a lata de cerveja e bebi um gole rápido.

Era melhor mudar o assunto e nada mais natural se começasse a entrevista. Quando antes o fizesse, mais rápido sairíamos daquele deserto escaldante.

— Recentemente você tem estendido os seus contatos com a comunidade latino-americana de FC. Soube que voltou recentemente do Chile. O que a atraiu na FC de outros países latinos e que semelhanças mais visíveis você enxerga entre eles e a FC praticada no Brasil?

Libby bebeu de sua cerveja, passou a língua nos lábios colhendo algumas gotas que escaparam e deu uma guinada com o carro para a esquerda, saindo da estrada principal e tomando outra, secundária, em péssimo estado de conservação.

— Este contato evoluiu por etapas, primeiro em congressos e depois por minha realidade acadêmica.  O Centro de Estudos Latinoamericanos tem um orçamento que inclui bolsas para desenvolver aulas novas.  Recebi uma em janeiro 2009 para dar uma aula em inglês sobre FC latinoamericana, utilizando a antologia Cosmos Latinos, organizada por Andrea Bell e Yolanda Molina-Gavilán.  Sendo contos de FC principalmente hispanoamericanos (os únicos representantes brasileiros eram Jerônimo Monteiro, André Carneiro e Braulio Tavares), resolvi suplementá-la com contos brasileiros traduzidos para o inglês, uma série de filmes de FC latinoamericanos e o romance Turing’s Delirium pelo autor boliviano Edmundo Paz-Soldán.

Diminuiu a velocidade acalmando-me, afinal estava a mais de sessenta milhas por hora numa estrada vicinal que não aceitava mais que trinta.

— Alfredo Suppia me ajudou com o cinema brasileiro – continuou –, e convidei mais dois palestrantes da área de FC hispanoamericana, Rachel Haywood Ferreira e J. Andrew Brown. A experiência resultou num artigo que vai aparecer em Teaching Science Fiction, ed. Peter Wright and Andy Sawyer (Palgrave).  Foi assim que comecei a ver traços em comum entre a FC hispanoamericana e a brasileira. Embora superficial, posso começar que a história, as gerações e as divisões são semelhantes.  O primeiro momento corresponderia à Primeira Onda, com a época atômica vista desde a periferia, fantasias de colonização inversa (o colonizado/alienígena vencendo o colonizador), e um pessimismo ou desconfiança a respeito da tecnologia.  Nos anos 70-80 vemos reações à ditadura em metáforas de sexualidade, uma das constantes nas distopias brasileiras e, na produção a partir dos anos 90, mais cyberpunk e a temática de violência, mas com variações regionais ou nacionais.

Depois de duzentos metros ela parou o carro. Bebeu toda a cerveja da lata e a jogou para fora do carro. Olhou para longe, avaliando o caminho e mais detidamente as elevações montanhosas que iam se aproximando.

— No Cone Sul, por exemplo, o ciborgue é o ser torturado – retomou a resposta –, dilacerado. No México, o implantado ciborgue é o operário, vítima das grandes corporações. Pelo que vi no Chile, há ciborgues assassinas e vampiros utilizando a violência como vingança ou exorcismo do passado, e existe também uma vertente New Weird, combinando a representação grotesca do corpo com traços de FC e horror, que talvez tenha aspectos em comum com a nova geração de escritores brasileiros. Aqui nos EUA, onde o espanhol se projeta mais, se pode entender o meu desejo de abranger novas áreas, trabalhar mais com alunos de espanhol e da pós-graduação.

Ela abriu mais uma lata, acelerou e retomou o caminho, mantendo uma velocidade moderada.

— Isto também ajudaria o programa de espanhol, já que não tem um número suficiente de aulas/professores para atender os alunos de forma adequada.  Por isso me candidatei em janeiro deste ano para uma bolsa de “aperfeiçoamento” vamos dizer, com a idéia de viajar ao Chile, melhorar meu espanhol, e, finalmente, dar uma aula sobre a FC latinoamericana em espanhol no futuro.  Outro aspecto desta bolsa era de pesquisar, ou, melhor dizendo, editar uma série de artigos de crítica e teoria da FC latinoamericana com J. Andrew Brown. Dividimos o trabalho, com ele organizando os textos hispanoamericanos e eu os brasileiros.  Assim, teremos um livro de crítica sobre a FC latinoamericana em inglês.  Ele também fazia parte do congresso no Chile, onde o escritor argentino/ americano Mike Wilson organizou o evento na PUC do Chile.

— Terminou? – perguntei ironicamente depois de sua dissertação.

— Essa pergunta, sim.

— A voz onisciente disse que a rodovia em que estávamos chama-se alguma coisa parecida com rodovia extraterrestre. Por que isso?

— Você já ouviu falar da Área 51?

— E quem não ouviu?

Libby não retrucou e isso ficou batendo na minha cabeça. Mas, por pouco tempo. Estávamos no deserto de Nevada, disse ela, anteriormente. A área 51 ficava lá. Caiu a ficha.

— Essa missão que você disse – pigarreei – não tem nada a ver com essa base ultra-secreta, tem?

— Qual a segunda pergunta?

Observei os saguaros e a vegetação arbustiva ressequida. As montanhas estavam próximas, bem próximas. O pó invadia a cabine do carro. A evidente mudança de assunto de Libby me pôs nervoso. Mas lhe fiz a pergunta seguinte.

— Qualitativamente é possível comparar os bons nomes de FC brasileira com autores da FC americana, inglesa, francesa, russa e alemã (países com tradição forte nesse nicho literário)? Nesse aspecto, ou seja, na qualidade literária, é possível afirmar que nossa literatura está historicamente avançando a ponto de acompanhar a qualidade de produção nesses países?

Ela pisou no breque e levou o carro devagar para fora da via. Estacionou uma centena de metros adiante, próxima de uma formação rochosa.

— Já que as idéias se transmitem ou se divulgam rapidamente, não acredito no “atraso” cultural. Existem diferenças de mercado e tradição. Precisa ter ciência para escrever ficção científica? Um país economicamente periférico pode ter conhecimento direto de um gênero que surgiu de países tecnologicamente mais avançados? Na América Latina do século XIX, as elites latinoamericanas aproveitavam o discurso hegemônico da ciência como a linguagem autoritária de conhecimento, auto-conhecimento e legitimização, o que Augusto Emílio Zaluar, entre outros, usava para justificar a idéia de progresso e civilização, uma extensão do projeto colonial.

Ela parou de falar por instantes para abrir a terceira lata de cerveja. Impressionou-me a rapidez com que ela ia secando uma lata após a outra.

— Veja só, em 2008, John Rieder publicou um livro Colonialism and the Emergence of Science Fiction pela Wesleyan UP, discutindo textos do século XIX desconhecidos do gênero, mostrando que as origens da FC estão profundamente ligadas ao discurso colonial.  Vários textos citados por Rieder, não são os clássicos do gênero, muito pelo contrário, são textos desconhecidos, mas mostram uma tendência geral da justificativa de “conquista” ou de “civilização.”  Então existe um mito de melhor qualidade; talvez seja questão de percentagens, mercado, e tradição.

Do lado latinoamericano, o livro de Rachel Haywood Ferreira (The Emergence of Latin American Science Fiction, Wesleyan, forthcoming 2010) confirma que a FC não era um gênero “importado” para escritores do século XIX, só que os textos não eram entre os clássicos nacionais, nem reconhecidos como FC.  Roberto de Sousa Causo também mina as origens do gênero no Brasil, documentando a produção do século XIX até meados do século XX em Ficção científica, Fantasia e Horror no Brasil, 1875-1950 (UFMG, 2003).  Estas pesquisas marcaram o primeiro passo em estudos de escritura marginal, a recuperação histórica—os feministas fizeram o mesmo para consolidar seu campo de estudo.  Quanto à qualidade, acho subjetivo.   Acho que alguns contos de André Carneiro, Rubens Teixeira Scavone, Dinah Silveira de Queiroz são comparáveis a Bradbury, por exemplo.  Acho as diferenças interessantes, como no romance Fuga para parte alguma de Jerônimo Monteiro que tem a vitória das formigas sobre a humanidade, um final tão distinto do filme americano de formigas gigantes Them em que o herói James Arness vence a praga.  A realidade é a mesma: guerra atômica, mas a visão é distinta. Talvez eu possa falar de tendências da FC brasileira contemporânea.  Existem vários escritores que cabem dentro da linha fantástica e literária, outros associados com a fantasia, FC hard ou histórias alternativas.  A maioria escreve em todos os subgêneros.  Existem muitos escritores originais e versáteis que estão sendo cada vez mais reconhecidos.  Estão surgindo novos nomes, com professores/autores escrevendo e incentivando a nova geração.  As revistas online têm crescido. Os subgêneros de fantasia pura, horror, vampiro, cyberpunk, FC escrita por mulheres, oferecem textos para todos os gostos.  Não sei se dá para comparar. Deve-se ler e conhecer o que se faz na Europa e na FC Anglo-americana, para comparar com o que se escreve no Brasil.

Saiu do carro, esticando rapidamente as pernas. Depois se dirigiu à carroceria. Desci também a tempo de vê-la retirar a caixa de quinquilharias e colocá-la no chão, à sua frente. Aproximei-me, curioso e fiquei observando-a enquanto ela a vasculhava. Retirou dois objetos metálicos oblongos. Entregou-me um deles.

— E para que serve isso? – perguntei com curiosidade, enquanto analisava o objeto.

Ela apontou o que tinha nas mãos para a área descampada à nossa frente e apertou o que parecia uma leve concavidade sobre a superfície metálica. Uma onda de choque fez voar pedras, arbustos e um saguaro, arrancando tudo do chão como se um tornado acabasse de passar por ali. Fiquei boquiaberto.

Voltou a se debruçar sobre a caixa, retirou de lá um cinturão que prendeu em seu quadril e mais alguns aparatos. Colocou-os em bolsas próprias no cinto. Embora não pudesse atribuir serventia a eles, já os respeitava até com certa solenidade.

— De onde você arrumou essas coisas fascinantes? Que tecnologia é essa?

— De onde eu vim, existem coisas muito mais impressionantes. Essas aqui são brinquedos de criança.

— De onde você veio, afinal?

Libby não respondeu. Observou a elevação montanhosa mais próxima e fez sinal para que eu a acompanhasse. Seguimos numa escalada branda até o cume, que atingimos em cerca de quinze minutos. Enquanto subia, me perguntava onde estava me metendo e, principalmente, com quem estava me metendo.

Ela se debruçou e fiz o mesmo. Observei o outro lado e vi a base militar a cerca de dois ou três quilômetros de nós. Uma cerca a delimitava não mais que duzentos metros adiante, logo após o sopé da montanha.

— Eis a famosa base Nellis – murmurou Libby.

— Vamos invadi-la? – perguntei num suspiro nervoso. Eu sentia que era exatamente isso que iria acontecer.

— Vamos! – respondeu Libby com entusiasmo.

— Seremos vistos. Com sorte, presos e processados. Com azar, metralhados.

— Não seja tão pessimista.

— Pelo menos me diga o que vamos fazer. Acho que tenho o direito de saber antes de arriscar o meu pescoço.

Libby sorriu, olhou para o céu límpido e depois de alguns segundos, respondeu-me.

— Resgatar um artefato alienígena de suma importância e que está nessa base desde que ela foi construída.

Limitei-me a ficar calado, olhando para ela com perplexidade.

— Uma coisa foi descoberta por um espeleólogo numa gruta em uma dessas montanhas. Militares cercaram a área evitando a aproximação de curiosos e pouco a pouco foram militarizando-a ao ponto de se tornar essa base militar. Até agora não conseguiram descobrir como funciona nem como podem adentrá-la. Eles têm uma visão errônea de sua utilidade.

— Alienígena? – perguntei, enfim.

— Passamos muito tempo esperando a oportunidade de podermos invadi-la e recuperar o que é nosso. Em condições normais seria uma ação fadada ao fracasso, mas esse seu relógio nos deu a resposta. A missão numa realidade paralela teria tudo para ser bem sucedida. E aqui estamos!

— Já faz alguns anos que seu livro foi editado no Brasil. De lá para cá, houve uma reativação da FC Nacional, com novíssimos autores e editoras investindo no gênero. Como eles se encaixam nas teses defendidas pelo livro? – perguntei de socapa, numa tentativa de mudar o assunto e, quem sabe, acelerar o final da entrevista e ir embora dali antes que mais absurdos fossem ditos e cometidos.

Libby retirou um aparelho do cinturão, ajustou alguns controles, escutei um zumbido curto antes de ela colocá-lo de volta ao cinturão. Depois se levantou e acenou para que eu a seguisse na descida da montanha.

— Enlouqueceu! – exclamei, assustado com aquela descida. – Seremos vistos! Estamos à vista de todos. Há vigilância!

— Acalme-se – respondeu-me ela com tranquilidade. – Ninguém está nos vendo. Nem lagartos, nem tarântulas, nem coiotes. Estamos cobertos por um manto eletromagnético que nos confere invisibilidade.

Não tentei entender. Não perguntei como aquele artefato funcionava, nem quem Libby era na verdade. Estava assustado demais para raciocinar com clareza.

— Somos sessenta e oito mil na Terra – disse-me ela, como se antecipasse as minhas dúvidas. – mil quatrocentos e vinte só no Brasil. Trezentos e quinze no Rio de Janeiro, um deles em Pinheiral!

Engasguei.

— Você não está querendo dizer que o Jorge Luis Calife… que ele… que, é? Ele é?

Libby não respondeu, limitando-se a manter um sorriso enigmático nos lábios. Ficou assim, como se se deliciasse com aquelas revelações até que chegamos à cerca. Eletrificada, claro.

— Meu livro está ligado a uma questão histórica e cultural. Como a FC retrata atitudes perante a modernização vistas na interseção dos ícones/subgêneros da FC e os mitos culturais brasileiros — Ela começou a responder enquanto retirava do cinturão uma pequena pistola de solda. Pelo menos era o que me parecia numa avaliação bem superficial. — É claro que com a globalização e a popularidade da Fantasia e de outros subgêneros; Steampunk, Vampiros, New Weird, no Brasil, existe essa idéia de superar limites nacionais; que o mundo da FC é transnacional, como aquela velha questão de cosmopolitanismo versus nacionalismo.  Fico contente com o novo interesse pelo gênero, já que quando comecei minha pesquisa sobre a FC da pós-ditadura por volta de 2000, encontrei um certo desalento após a euforia dos anos 90 e o surgimento do fandom e a Segunda Onda de escritores. Portanto, acho que existem toques ou resquícios de brasilidade ou perspectivas que surgem de uma cultura, e que, para mim, são de maior interesse, embora o autor esteja escrevendo sobre outra cultura ou ambientando o texto em outro país. Por exemplo, (e o exemplo não é dos mais originais, por isso não sou escritora), posso imaginar um autor americano de FC escrevendo sobre a invasão da região amazônica, mas a idéia de Roberto de Sousa Causo ou de Gerson Lodi-Ribeiro de dividir o Brasil ou de aliá-lo com outros países da região e mudar a política, parece-me uma perspectiva latino-americana, uma visão de dentro, ou uma visão pelo menos não hegemônica. Então, acho interessante a combinação de um gênero volúvel, supostamente importada, dentro perspectiva de autores brasileiros.  Li o conto Steampunk de Jacques Barcia Uma vida possível atrás das barricadas (2009), e achei interessante a idéia de uma golem e um autômato quererem ter filhos.  O conto Julgamentos (1993) de Cid Fernández lida com ciborgues que desejam o mesmo. Não vi muitos textos em inglês sobre este tema, o ciborgue representa a crise de papéis de gênero, ou o ser “pós-gênero.” Na FC do Chile e da Argentina, como mencionei antes, o ciborgue muitas vezes representa uma maneira para entender a tortura, enquanto no México o ciborgue representa a crise econômica do mercado do trabalho.  Para mim, isto é fascinante. Meu artigo The Post-human in Third Wave Brazilian Science Fiction, traduzido por César Silva, vai aparecer no Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica, que aborda justamente esta questão a antecedentes históricos, FC transnacional, etc. A meu ver, ainda existem traços de brasilidade nesta nova onda, e talvez minha ótica seja esta, então é isso que eu vejo. É claro que existem outras perspectivas, outras aproximações.  Os meus interesses refletem meus valores e minhas preferências, então como pesquisadora de fora, quero ver o que existe de diferente.

Então apontou a estranha pistola para a cerca e disparou um raio azulado de larga abrangência. O que era metal se transformou numa massa amorfa fumegante, escorrida pelo chão. Ouvimos ao longe uma sirene. Avançamos, caminhando lado a lado até que dois jipes militares surgiram, se aproximando rapidamente. Libby me segurou no braço, fazendo sinal para que me mantivesse calado. Os jipes passaram por nós a toda. Eu estava perplexo. Soldados desceram e foram observar o estrago. Gesticulavam e falavam em rádios.  Caímos fora, caminhando com cautela, tentando não fazer barulho, nem levantar pó.

Aproximamos-nos de instalações. Grandes galpões ladeavam nosso caminho. Veículos militarem e de passeio estacionados. Uma pista de pouso e decolagem com duas grandes aeronaves estava à nossa direita, não mais que cem metros de distância. Foi pura ilusão acreditar que entraríamos ali sem nenhum problema. Logo surgiram soldados. Fomos obrigados a nos refugiar atrás de galões, ladeando paredes, fazendo de tudo para não ficar no caminho nem das pessoas nem dos veículos. Não podiam nos ver, mas podiam se chocar conosco. Isso não seria uma boa ideia.

— Do outro lado há uma montanha e nela uma gruta. Ela mergulha centenas de metros de profundidade na rocha. Uma câmara interna abriga o artefato que te falei. Está alocado atrás de portas praticamente inexpugnáveis, protegido por sistemas de segurança de última geração e guardado por soldados treinados e fortemente armados.

— E vamos resgatá-lo? – perguntei com evidente perplexidade.

— Sim. Não é excitante?

— E como pensa passar pelos obstáculos? Espremendo-se em paredes até lá? – minha preocupação maior era com o narrador onisciente. Estava apavorado pensando que ele poderia surgir de repente, no meio da ação, denunciando nossas posições.

Libby sorriu vitoriosa e sacou o objeto metálico oblongo. Engoli em seco diante das perspectivas. Ela me puxou pelo braço, apontou para o caminho que deveríamos tomar e apertou o botão. Foi um festival de soldados, latas, pedregulhos e jipes sendo jogados para os lados, numa lufada violenta. Incitou-me a correr e foi o que fiz. Tirei o meu objeto, segurei-o na mão enquanto corríamos e fui apertando o botão de quando em vez, me divertindo em ver as coisas e as pessoas voando. Logo ouvimos tiros, mas esses eram dados sem direção. Não sabiam em quem nem para onde disparar. Logo escapamos da área central, metemo-nos em trilhas mais estreitas, entre armazéns, e vimos, então, a famosa montanha diante de nós.

Uma rampa guarnecida por cercas de arame farpado. Guarita de entrada onde dois soldados estavam postados. Cancela eletrônica. Nada que não pudéssemos derreter ou “assoprar” para os lados. A entrada permitia que veículos leves fossem por ela. Uma grande comporta de aço, aparentemente automática, franqueava a entrada à gruta. Não duvidava encontrar lá dentro uma espécie de cidade subterrânea. Libby evitou a entrada principal. Aproximou-se de uma lateral e disparou a sua pistola de raios na cerca. Enquanto ela escorria pelo chão, corremos para a o início da rampa. Como esperávamos, os dois soldados saíram de seus postos, apontavam as armas para a área logo após o buraco e disparavam rajadas a esmo, tentando atingir alguma coisa que não podiam ver. Passamos sob a cancela sem riscos maiores e corremos rampa acima.

Foi uma entrada silenciosa.

Nada além de uma espécie de antecâmara antecipando uma parede larga central com elevadores. Havia corredores laterais, amplos e com teto bastante alto, mas Libby não deu a eles nenhuma atenção.

— Está pensando em apertar o botão e descer calmamente? – perguntei não sem algum sarcasmo.

— Claro que não – respondeu-me ela. – não são simples botões que fazem movimentar esses elevadores. É necessário digitar um código alfanumérico no painel frontal e permitir escaneamento de retina. Não temos tempo para tudo isso.

Catou no cinturão um badulaque e, enquanto a grande comporta de aço ia se fechando às nossas costas, acionada externamente, girou nele um dispositivo e uma luz esmaecida, amarelada, iluminou a porta de um dos elevadores. O metal pareceu ondular. Libby aproximou a mão e a tocou mostrando-me como parecia estar liquefeito.

— O efeito dura alguns minutos – disse ela. – Saltaremos para dentro. Do outro lado há um fosso. A queda deve ser de aproximadamente oitocentos metros. Como os elevadores se movem por força eletromagnética, infelizmente conflitam com meu dispositivo. Enquanto descemos, ficaremos visíveis. Creio que lá embaixo, já no solo, idem.

— Saltaremos? – perguntei perplexo. – No vazio? Vamos nos esborrachar!

Libby catou uma caixinha de dentro do cinturão. Girou uma pequena manivela – tão prosaica que duvidei que pudesse ser artefato alienígena –, apertou um botão e o devolveu novamente ao cinturão. Agarrou-me num abraço apertado e jogou-se contra a porta do elevador, arrastando-me com ela. Nós a atravessamos como se estivéssemos atravessando uma parede de água.

E caímos. Caímos vertiginosamente. Só não tão rápido quanto eu poderia supor. Dava-me a impressão de estarmos contidos por cordas ou redes invisíveis. Descíamos o vão livre, profundamente escuro, sem nada enxergar, numa velocidade tão moderada que deu à Libby tempo de procurar uma lanterna cujo facho era poderoso e, com ela, iluminar o que parecia ser o final daquele mergulho.

— Há mais uma pergunta? – perguntou-me Libby. Eu estava atônito demais para me lembrar da entrevista.

— Sim – respondi.

— Faça-a, então. Mas prometa-me que não apertará o botão do relógio enquanto o artefato a que vim buscar não estiver já em meu poder.

— Prometo – respondi, assustado com esse compromisso. — Está previsto para este ano o lançamento de um novo livro seu no Brasil, pela Devir. Fale-me deste seu novo trabalho de não ficção.

Visão alienígena brinca com a idéia da minha condição de estrangeira e do tema do estranhamento, isto é, ver o Brasil pela ótica da FC.  Oferece um panorama de meus artigos desde os anos 80 até a atualidade. Quando escrevia minha tese de doutorado, trabalhava principalmente os gêneros da distopia e do conto fantástico como reações à política da ditadura.  Depois, quando cabia desenvolver mais este trabalho inicial, comecei a pesquisar a FC a partir da década dos 90.  O novo livro reúne uns 12 artigos ou ensaios. O primeiro artigo é de maior extensão e resume o método utilizado no meu livro, aproveitando outros exemplos que não tive tempo, espaço ou conhecimento para incluir no livro de 2005. Tem um pouco de tudo—organizei os ensaios por categoria: Icones da FC: robôs, ciborgues e a cidade, subgêneros da FC: histórias alternativas, FC hard ou fantasia, Ditadura e FC: o conto fantástico e a distopia, e Escritoras da FCB.  Quatro artigos são inéditos. Então, no conjunto da obra, toco na obra dos seguintes autores, Levy Meneses, Guido Wilmar Sassi, Dinah Silveira de Queiroz, Rubens Teixeira Scavone, Jorge Luiz Calife, Braulio Tavares, Gerson Lodi-Ribeiro, Ivanir Calado, Henrique Flory, Cid Fernández, Daniel Fresnot, Marien Calixte, José dos Santos Fernandes, Octávio Aragão, Fábio Fernandes, Adriana Simon, Simone Saueressig, Júlio Emílio Braz, Marcia Kupstas, Martha Argel, Helena Gomes, Luiz Roberto Mee, Orlando Paes Filho, Mariana Albuquerque, Michelle Klautau, Finisia Fideli, Carlos Orsi, Roberto de Sousa Causo, André Carneiro, Murilo Rubião, José J. Veiga, entre outros. O novo artigo sobre o pós-humano que vai aparecer no Anuário inclui referências a textos de Felipe Tazzo, Cristina Lasaitis, Octávio Aragão e Goulart Gomes. Um artigo que vai aparecer no mês que vem pela Luso-Brazilian Review é sobre os seres “transgender” na FC &FB desde Machado de Assis até o presente.  Acho que o meu próximo livro vai lidar mais com textos da nova geração, sobretudo na minha análise sobre cibogues e clones.  Para ver o que meu colega Andrew Brown anda pesquisando, veja o índice do livro que lançou.  Ele mexe mais com autores hispanoamericanos slipstream: http://us.macmillan.com/cyborgsinlatinamerica.  Andrew me disse que no livro dele a América Latina não inclui o Brasil, então recomendou que eu continuasse com o tema.  Quanto aos escritores da nova geração, o artigo publicado a quatro mãos com Causo sobre a história da FCB saiu na mais recente edição da revista Extrapolation 51.1 (2010) 13-39.  Lá falamos da Terceira Onda, Gaming, Horror, Fantasia, the New Weird, Graphic novel.   Algumas novas tendências e autores estão lá. Terminamos o artigo em 2008 e só está saindo agora!

Então pousamos sem traumas sobre o teto do elevador que estava no subsolo. Libby desativou o aparelhinho de antigravidade e voltou a utilizar o fazedor de paredes liquefeitas. Caímos dentro do elevador, de pé, embora eu tenha quase sentado o traseiro no chão numa escorregada. Ela empunhou o objeto oblongo e avisou-me que a ação começaria agora.

— Procure, assim que sairmos daqui, um lugar para se esconder. Lembre-se, você prometeu não apertar o botão do seu relógio. E não se preocupe comigo. O que vim buscar é um transporte interdimensional. Livro-me com ele dessa realidade alterada e volto para nossa própria realidade. Pena que só dá pra um.

Assim que a porta do elevador se transformou em água ela apertou o botão do objeto. Uma onda de choque violenta irrompeu dentro do recinto ao mesmo tempo em que nós nos lançávamos para fora. Havia uma câmara ampla, teto tão alto que seria necessário um helicóptero para alcançá-lo. Fomos disparando à medida que avançávamos. Surpreendia-me o amplo espectro de atuação daquela diminuta arma. Homens se elevavam no ar, indo cair muitos metros adiante, atordoados. Balas eram rechaçadas pelas ondas de choque. Corri para detrás de alguns caixotes enquanto Libby avançava de encontro a… fiquei pasmo. Dois pratos cinza chumbo emborcados um contra o outro. Diâmetro de aproximadamente quarenta metros. Um disco voador! Era isso mesmo, um disco voador!

Ela continuava disparando. Ao se aproximar da nave, uma rampa que durante anos não fora descoberta nem acessada, desceu suavemente. Ela entrou e desapareceu lá dentro, não sem antes fazer o sinal de OK na minha direção. Continuei pasmo, olhando aquela maravilha, sem me dar conta dos perigos que ainda corria.

A nave interdimensional começou a vibrar suavemente, emitindo luzes que pareciam brotar de sua superfície. Todos os soldados que estavam próximos se afastaram, incertos do que deveriam fazer. Observavam, apenas, assombrados, aquela nave finalmente, após tantos anos, tornar-se operacional. Mas os que imaginavam que nada poderia ocorrer por estar ela encerrada numa câmara subterrânea, certamente jamais se perguntaram como teria ido parar ali. A nave elevou-se no ar um bom par de metros, girou sobre seu próprio eixo algumas vezes e, então, num estalo, desapareceu. Estavam tão embasbacados que não se deram conta de outro intruso oculto atrás de caixas de madeira, a poucos metros de onde se encontravam.

O que eu mais temia aconteceu. Praguejei contra o narrador onisciente que fez duas dezenas de soldados armados e furiosos voltarem-se na minha direção. Teriam continuado ignorantes de minha presença não fosse essa interferência inesperada e idiota. Mas fui mais rápido que as balas que fizeram explodir os caixotes. Apertei o botão do relógio e voltei para casa.

Colaboraram nessa entrevista Delfin, Marcello Branco e Jorge Luis Calife.

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5 Respostas to “De Bar em Bar entrevista Libby Ginway.”

  1. Jim Anotsu Says:

    Ótima entrevista,mesmo para quem tem pouco conhecimento na área de sci-fi como eu, é possível apanhar coisas novas. Relógio do bom.

  2. Daniel Borba Says:

    ah, eu entraria pro sorteio do livro, mas já tenho um autografado…:D. Se eu ganhar, aceito uma contra-proposta…

  3. Daniel Borba Says:

    Opa… acho que peguei carona no relógio quântico e vim parar num post alternativo…=P

  4. DROPS | Tudo Says:

    […] A pesquisadora foi entrevistada por Tibor Moricz e uma equipe de colaboradores, na seção “From Bar to Bar” (em inglês) do blog de Moricz, É só Outro Blogue, http://frombartobar.wordpress.com/2010/07/07/from-bar-to-bar-interviewes-libby-ginway/, ou leia a entrevista em português, no https://esooutroblogue.wordpress.com/2010/07/13/de-bar-em-bar-entrevista-libby-ginway/ […]

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