De Bar em Bar entrevista Jorge Luis Calife.

Caminhei pelo corredor tomando o maior cuidado em não tropeçar em velhas quinquilharias largadas pelo caminho. Tomava especial cuidado com alguns alienígenas caídos no chão. Pernas e braços estendidos. Alguns com a garganta cortada. Outros plenamente bêbados, ainda balbuciantes, contorcidos e entrelaçados em várias pernas e braços, alguns indistinguíveis dos outros.

As paredes circundantes eram circulares e deviam possuir cerca de quatro metros de diâmetro. Abriam-se, aqui e ali, corredores que levavam a lugares desconhecidos e cuja extensão era difícil calcular devido à obscuridade em que mergulhavam após poucos metros.

Alguns olhares inamistosos me acompanhavam, vindos de seres ainda não completamente entorpecidos. Havia vários deles, de todas as espécies, de todas as raças e conformações físicas.

Depois de uma dezena de metros me desviando de obstáculos me deparei com uma porta estanque. Fechada hermeticamente. Analisei-a tentando adivinhar como a faria se abrir, quando, num átimo, ela zuniu e se desgarrou da parede metálica, deslizando ruidosamente até ficar completamente aberta. Do outro lado, dois aliens com cerca de dois metros de altura amparavam-se, trôpegos, tentando sair.

Dei-lhes passagem.

Adiantei-me e a porta se fechou noutro zumbido metálico, cravando-se na parede de tal forma que me parecia estar escavando-a pouco a pouco. Estava uma balbúrdia. Mesas de plexiglas, balcão circular de onde alguns garçons deslizavam carregando garrafas multicores. Aliens trotavam indo e vindo, alguns altercavam, outros trocavam insultos, um ostentava abertamente uma espada longa, de lâmina estreita e aparentemente afiadíssima. Agitava-a nervosamente, pronto a decepar membros de quem ousasse enfrentá-lo.

Chamou-me atenção a extremidade oposta daquele amplo salão. Não havia paredes, mas uma abertura larga de onde se podia ver a imensidão do espaço. Sentado com um copo diante de si, completamente alheio a qualquer distúrbio, estava Jorge Luis Calife. Mergulhado no ato de contemplação. Aproximei-me driblando alguns contendores e me sentei diante dele, igualmente fascinado pela paisagem.

Além de uma miríade de sóis distantes, um mais próximo deixava uma cauda atrás de si como se fosse um cometa. Próximo dele um buraco negro o sugava com todas as forças, drenando sua energia com voracidade.

— Não é incrível? – balbuciou Calife, sem tirar os olhos da cena.

— Sim – respondi.

—Gostei. Amei. Lugar melhor não poderia existir para essa entrevista – disse, virando-se para mim e bebendo um pouco do que tinha no copo.

— Onde estamos? – perguntei.

— Numa velha estação orbital. Quando atingiu seu tempo de vida útil, consideraram-na como sucata e a atiraram ao espaço. Ficou vagando sem rumo até ser encontrada por piratas espaciais. Tomaram-na e fizeram alguns reparos necessários. Acabou transformada num grande depósito de carga roubada e contrabando. Ah, e fizeram esse bar. Um bom bar. Frequência estranha, mas com uma vista maravilhosa.

— tempo de vida ainda mais curto, presumo – eu disse apontando com o queixo para o buraco negro adiante.

— Ela gravita o buraco, bastante próxima do horizonte de eventos. É um lugar difícil de abordar e nem todos tem coragem para isso. Dessa forma, trata-se de um reduto pirata quase inexpugnável. Mas um dia… Mergulhará. E com quem estiver por aqui.

Um garçom solícito deixou na mesa um copo. Não havia pedido nada, nem pretendia tomar nada. Mas um olhar de Calife me bastou para entender que deveria aceitar sem questionamentos.

— Cerveja nictiana. Um composto de ingredientes que você certamente não vai querer conhecer. Mas tem um sabor muito agradável e teor alcoólico de 60%.

Observei o líquido borbulhante e a cor levemente acanelada. Experimentei um pequeno gole e senti, além do álcool que me fez arder as papilas, um suave sabor de framboesa. Meus olhos avermelharam quase instantaneamente, coisa que fez Calife soltar um sorriso divertido.

— É esse o famoso relógio quântico? – ele me perguntou, olhando para o mecanismo em meu braço.

— Ele mesmo – respondi, levando instintivamente a mão até ele.

— trouxe-nos para um cenário que conheço como a palma das minhas mãos.

— melhor assim – respondi –, nos dá a impressão de que alguém está no controle da situação.

— Quais as perguntas? Essa cerveja tem o excepcional dom de tornar bêbado o mais resistente. Se demorarmos muito, logo não teremos condição nem de nos levantarmos.

— Seu trabalho é elogiado, mas existem críticos – não poucos – que o acusam de se acomodar nas eternas aventuras de suas heroínas, quando poderia diversificar suas abordagens e temas. O que você pensa a respeito?

Mais um gole, mais uma olhada longa para o espetáculo oferecido pelo buraco negro e Calife suspirou.

— Olha, o único livro que eu queria escrever se chama “Ângela entre dois mundos” que ainda não foi publicado. Os outros surgiram como consequência desse, para cumprir contratos com editoras. Quanto a explorar outros temas, já fiz isso num monte de contos, que estão saindo nessa coleção “Os melhores da FC” organizada pelo Causo. Quem quiser é só conferir lá.

Gritos irromperam atrás de nós. Alguém sacou uma arma, houve ameaças e apenas um disparo. Um corpo caiu pesadamente no chão. O autor do tiro foi até ele e o chutou um par de vezes. Depois voltou a se sentar. Guardou a arma displicentemente num coldre puído e silenciou, mergulhado numa bebida qualquer que não a cerveja nictiana.

— Como está sendo a recepção da Trilogia Padrões de Contato no mercado? Qual a perspectiva de lançamento de Ângela? – perguntei quando a voz me voltou.

— Eu fui contra a republicação de Padrões de Contato. O público para esse tipo de livro é tão pequeno que eu preferia investir tudo no livro inédito. Mas o Causo, que organiza as edições pela Devir, insistiu que tinha que republicar Padrões, que o livro inédito só depois dele. Resultado: já vai fazer um ano que saiu o livro e até agora me rendeu um salário mínimo de direito autoral. Pra ter esse resultado pífio eu preferia ter feito só o Ângela entre dois mundos. Agora vamos ver, se o Ângela sair esse ano terá valido a pena. As coisas seriam muito melhores se os editores ouvissem a opinião dos autores.

— Calife é mais conhecido por ter sido o inspirador de Arthur Clarke, ou pela sua produção literária? Como a relação com Clarke o ajudou como escritor?

Bem que ele tentou responder, mas um sujeito embriagado se sentou na mesma mesa em que estávamos. Olhou-nos com desprezo e soltou a língua, fazendo-a vibrar entre os lábios. Depois apontou o dedo para mim e fez sinal para que me erguesse. Não entendi nada. O Calife, na maior sem cerimônia, levantou-se e aplicou vigoroso sopapo no cara. Ele rodou na cadeira em que estava e tombou inerme. O evento provocou meio segundo de silêncio no bar e depois o vozerio voltou ao normal.

— Um cotleriano. São brigões por natureza – disse-me o Calife.

— O que ele queria comigo? – perguntei, preocupado.

— Com você, nada. O desafio era para mim. Ele só queria que você caísse fora. Olha, Tibor, as coisas aqui são resolvidas na porrada ou coisa pior, como deve ter notado. Então, se alguém se aproximar de você e você sentir que existem segundas intenções, parta para o ataque sem titubear. Leva a melhor quem for mais rápido.

— Vou tentar me lembrar disso – murmurei.

— Acho que ainda sou o cara que inspirou o Clarke a escrever 2010. Independente da amizade, eu acho que aprendi a escrever FC lendo os livros do Clarke. Acabei entendendo mais do universo dele do que ele mesmo. Quando saiu 2010 eu percebi que ele tinha cometido um erro na descrição da nave Discovery. Eu conheço aquela nave como a palma da minha mão. Falei com ele e o Clarke mandou uma mensagem urgente para o Peter Hyams, que tava fazendo o filme em Hollywood, dizendo que o Calife tinha achado um erro na cena da abordagem da nave. O Hyams corrigiu no filme. Essa correspondência dele com o diretor, me citando, saiu no livro The Odyssey File da Ballantine Books. Uma coisa eu garanto, se eu estivesse lá o Bowman tinha desarmado o anel cognitivo que tornou o Hal psicótico com meia dúzia de palavras. E o Frank não teria morrido.

Por alguns instantes fizemos silêncio. Não que nosso silêncio fosse fazer alguma diferença na balbúrdia do salão. Olhamos para fora, através do que parecia ser vidro, mas não era. O Calife pareceu captar minha curiosidade e aproximou o dedo do vão, fazendo surgir várias ondas concêntricas que iam se alargando levemente até desaparecer.

— Energia pura. Trata-se de um escudo energético. Parece melífluo, capaz de ser vencido com um pouco mais de força. Mas nem um disparo de uma arma de pulsos quânticos seria capaz de abrir um buraco nessa armadura. Por outro lado, se desfaz com uma rapidez impressionante assim que a moldura metálica que a contorna é destruída. Paradoxal, não é mesmo? Para quê um escudo de energia tão poderoso se a estrutura metálica dessa estação é tão frágil quando uma casca de ovo?

— Para quê manter um centro logístico como esse, armazenando muamba e butins, se o fim está tão próximo? – perguntei, reforçando o questionamento do Calife e me referindo, obviamente, ao buraco negro.

— Questões… Questões…

— Como você enxerga o mercado literário nacional atualmente. Como encara o fandom?

— As pessoas ficam falando que a FC brasileira é invisível; na verdade toda a literatura brasileira é invisível. As pessoas só leem livro de religião e autoajuda. Até os livros de FC estrangeiros só são publicados se virarem filmes. Eu traduzi o Eu Robô do Asimov para a Ediouro, a toque de caixa, porque fizeram um filme que só usava o título do livro do Asimov. A cultura brasileira atual é audiovisual. Se não virar filme ou game, o livro é ignorado. O fandom é que mantém a FC viva no Brasil. Se não fossem os fanzines, as convenções e reuniões, tudo seria esquecido. Eles prestam um trabalho inestimável.

— Voltando à primeira pergunta, Calife, nessas duas coletâneas recentes – os melhores contos brasileiros da ficção científica –, seus trabalhos são atuais? Porque as críticas que fazem a você não são quanto a sua produção anterior, mas quanto a atual. Dizem que você só escreve histórias com Ângela Duncan e outras beldades e desistiu de se aventurar por outras veredas, trazendo narrativas novas e surpreendentes aos leitores. Reclamam da sua passividade em se estabelecer num argumento só e não experimentar outras vertentes.

O Calife franziu o cenho. Apertou os olhos, olhando para mim com irritação. Pegou o copo ainda meio cheio, bebeu o restante da cerveja nictiana num gole só, se levantou sem tirar os olhos de mim e, num gesto rápido e inesperado, atirou o copo sobre a minha cabeça. Ela se estilhaçou na cara do sujeito armado que vinha assomando sobre mim, numa tentativa de ataque prontamente rechaçada.

Então o tempo fechou. O céu desabou, as paredes se estreitaram, os ânimos se exaltaram e tudo aconteceu numa sucessão tão rápida que mal posso descrever o que aconteceu.

Fui agarrado pelos ombros e jogado alguns metros distante. Caí sobre uma mesa que, embora firmemente atarraxada ao solo, quebrou uma das pernas e pendeu, me deixando tombar no chão sujo e gorduroso. Aliens pegajosos se atracaram em luta furiosa. Levantei-me sob uma saraivada de golpes, todos desferidos contra mim e contra todos que estivessem mais próximos. Vi o Calife girar um baixinho de duas cabeças sobre os ombros e arremessá-lo contra um grandão de uma cabeça só, mas com quatro braços tão grossos que pareciam troncos de uma sequoia. Peguei uma garrafa azul piscina e a brandi agitado de um lado ao outro. Ela arrebentou nas fuças de um dos garçons que tentava recolhê-la, como se fosse peça sagrada e preciosa. Fui atingido nas costas, na nuca e nos quadris. Chutes ou socos, não dava para ter certeza. Desferi um cruzado e quase quebrei a mão numa couraça óssea que fazia as vezes de cabeça num sujeitinho escroto que blasfemava e ria ao mesmo tempo em que socava sistematicamente o peito de outro cotleriano.

A briga teria durado muito mais se não fosse a súbita aparição de uma mulher lindíssima, com um corpo escultural. Golpes precisos de uma artista nata em artes marciais e logo estavam todos por terra, estatelados. Menos eu e o Calife que ostentávamos algumas equimoses, roupas rotas e expressões apalermadas.

A mulher se aproximou de mim e passou a mão delicadamente pelo meu rosto.

— É um homem interessante. Mas não é a você que estamos em busca, agora. Quem sabe em outra ocasião.

— Ângela – balbuciou Calife, tentando se aprumar.

— Querido – respondeu ela, apertando-o num abraço mais que afetuoso – saiamos daqui. Vamos lançar essa carcaça no buraco negro e é melhor estar longe.

O Calife se virou para mim. Uma expressão vívida de satisfação e orgulho.

— Não preciso do seu relógio para me mandar. Ângela Duncan vai cuidar de mim de agora em diante.

Vi-os saindo. Um pouco antes da porta se fechar, ele se virou para mim e deu a última resposta.

— Os dois contos que saíram em Os melhores contos brasileiros da ficção científica são, um da década de 1980 e outro da de 1990. Já o da antologia Gastronomia Fantástica foi escrito há três anos e o da Imaginários escrevi em 2008. Eu tenho a série de noveletas Os filhos de Medeia sobre a colonização de um planeta por bebês de proveta criados por robôs, que continua inédita assim como outras histórias. Tenho uma história sobre um ataque terrorista num Brasil do futuro que o Marcello Branco rejeitou para uma coletânea atual da Editora Devir. Pediu para que fosse melhorada. Um dia, quem sabe. Portanto, não me encham o saco com esse tipo de cobrança. Eu escrevo o que eu imagino; quem não gostar que leia o Causo, você, o Gerson, o Braulio. Há tantos autores disponíveis, porque eu tenho que escrever pra todos os gostos? Se ainda ganhasse bem pra isso, oras!

Então, depois do desabafo, voltou a sorrir. Ângela Duncan o abraçou pela cintura, carregando-o consigo. Ainda pude ouvi-la prometer que “trataria” bem dele.

Só, tendo um cenário de destruição ao meu redor e imaginando que em breve a estação orbital estaria mergulhando definitivamente dentro do buraco negro, apertei o botão de meu relógio quântico. Fui curar minhas feridas em casa.

Colabore com a literatura fantástica nacional. Compre Padrões de contato.

Tags: , , , , ,

8 Respostas to “De Bar em Bar entrevista Jorge Luis Calife.”

  1. abortoceleste Says:

    Mais uma grande entrevista! Tô gostando desses bares e, hoje, fiquei muito interessado na tal cerveja nictiana. Vc trouxe, pelo menos, algumas garrafas pra cá? ehehehe.
    Meu conhecimento de FC & afins é muito limitado, mas de uns tempos pra cá, e principalmente frequentando as mesas dos teus bares, tenho aprendido bastante. Desconheço, por exemplo, o Calife a a Ângela Duncan, mas agora já não tenho mais nenhuma desculpa para ignorá-los.
    Tô ficando cada vez mais fascinado com esses universos malucos. Uma coisa boa, enfim, mais efervescente do que a literatura de gravata que se pratica desde sempre aqui no Brasil.

    Abraçus!

    • Tibor Moricz Says:

      Fico feliz que esteja arrebanhando admiradores para as terras inauditas da ficção científica nacional. Há muito mais para ser exposto e descoberto e continuarei a minha saga enquanto a saúde e os eventos permitirem. Obrigado pela preferência…;)
      Quando à cerveja nictiana, trouxe, sim, três garrafas. Mas essas, guardo a sete chaves…rs

  2. uberVU - social comments Says:

    Social comments and analytics for this post…

    This post was mentioned on Twitter by tmoricz: De Bar em Bar entrevista Jorge Luis Calife.: http://wp.me/pAp8d-sF

  3. DIOberto Says:

    “…meu conhecimento de FC & afins é muito limitado, mas de uns tempos pra cá, e principalmente frequentando as mesas dos teus bares, tenho aprendido bastante…” (2)

    Tibor, também estou me divertindo bastante lendo as entrevistas do “De Bar em Bar”, e elas estão ampliando muito minhas referencias da FC brasileira.
    Torço que venham dezenas de entrevistas, sempre inusitadas, engraçadas e com muitas informações.
    Também espero que concretize a elaboração de um livro com elas no futuro; acredito que além de prazeroso será um excelente meio de divulgar os nossos escritores.

    Ah! No dia que achar que já entrevistou demais e resolver fazer o livro, faça mais uma em que vc acaba encontrando/entrevistando vc mesmo…

    • Tibor Moricz Says:

      A ideia de me entrevistar, numa distorção temporal qualquer, já havia me ocorrido, DIOberto. É uma possibilidade muito atraente.

  4. Antonio Luiz Says:

    Dou todo o meu apoio à ideia da auto-entrevista. “Síndrome de Cérbero” já mostrou que isso é possível. E no cenário de “Fome”, por favor!

  5. Marcelo Bighetti Says:

    Caro Tibor, sem dúvida esta sua última entrevista foi fantástica vou ficar no aguardo de sua auto-entrevista. Com certeza será a melhor! Sucesso a você.

  6. Padrões de Contato « Além das estrelas Says:

    […] ter lido uma entrevista do Calife para o escritor Tibor Moricz no De Bar em Bar, que pode ser lida aqui. Enquanto eu lia a entrevista, fiquei pensando em como eu tinha gostado do livro e em quanto lixo […]

Deixe um comentário