Programara exatamente isso. Ou quase isso. Uma rua, uma cidade, multidão. Carros, semáforos, sinais de trânsito. Mas havia alguma coisa errada, muito errada. Apalpei o relógio quântico, surpreso por estar num cenário bastante próximo do que planejara. Não queria mais matas nem desertos. Nem monstros nem alienígenas. Não dessa vez. Eu queria uma cidade e estava em uma. Queria agitação, movimento, caos urbano… Estava tudo ali.
Mas… O céu estava cinza. As pessoas vestiam-se com calças, camisas, vestidos, sobretudos, todos cinza. Os semblantes eram acinzentados. Expressões tristes, desenxabidas, olhares esmaecidos. Passavam por mim, num vai e vêm, molengos, ombros caídos, costas curvadas. Os carros, todos alternando escalas de cor que iam do preto ao cinza claro. Circulavam lentamente, obedecendo ao fluxo. Os semáforos exibiam três cores distintas: cinza escuro, cinza claro e cinza mais claro ainda.
Então me observei melhor. Vestia-me do mesmo jeito. Calça e camiseta cinza. Tênis cinza. Meias cinza. A pele, A pele! Era levemente acinzentada. Arregalei os olhos, assustado. Observei o relógio quântico. A pulseira era cinza. A caixa era cinza. Os mostradores, cinza.
Então fiquei triste. Tão triste e de forma tão incontida que curvei os ombros, abaixei o olhar e caminhei molengo, até parar diante do bar. Um trailer largo e espaçoso. Todo pintado de cinza, com um luminoso desligado, mas com letras cinza grandes, destacadas: Bar do Mané.
Soltei um sorriso triste. Estava satisfeito, mas era uma satisfação macambúzia. Entrei, olhei em busca do Braulio, mas ainda não estava lá. Escolhi um lugar, sentei-me próximo da janela, observando tristemente o movimento da rua.
Um garçom com grandes barbelas sob os olhos se aproximou. Pedi uma cerveja, mas a vontade era de tomar sicuta. Nunca me senti tão mal, tão deprimido e atormentado. Ele se afastou, arrastando os pés.
Encostei a testa na mesa. Senti pequenas lágrimas assomarem. Mas as contive. Não sem grande esforço. Fiquei assim até o garçom me trazer a cerveja e até escutar mais alguém se aproximar e se sentar diante de mim. Ergui a cabeça o suficiente para reconhecê-lo.
— Oi, Braulio.
— Oi – ele me respondeu, melancólico. Olhar igualmente triste. Expressão derrotada.
— Fico feliz em vê-lo – eu disse, sem, contudo, expressar uma só gota de felicidade.
— Também estou feliz por essa entrevista – nem o mais crédulo dos crédulos acreditaria nisso. A tristeza estava tão estampada em seu rosto que nem a máscara da morte seria mais perturbadora.
— Essa cidade é… Tão… Tão…
— Contagiante.
— Sim. Estranha e contagiante.
— Estava nos planos? – Braulio parecia perplexo.
— Claro que não. Seria normal se estivesse? – voltei a apoiar a cabeça sobre a mesa. Soltei um suspiro longo e angustiado.
— Esse líquido cinza é…
— Cerveja, creio. Não experimentei, ainda. Peça um para você.
— Obrigado. Acho melhor, não. Não sei que estranho efeito o álcool poderia me provocar num cenário deprimente como esse.
— Você é, hoje, uma referência nacional em ficção especulativa. Antes de lançar Espinha Dorsal da Memória, qual era sua relação com o gênero e com o fandom? – perguntei, erguendo o rosto com esforço.
Braulio se manteve quieto por longos momentos, olhando para mim com tanta tristeza que quase me pus a chorar copiosamente. Seu rosto exprimia um desalento enorme.
— Suponho que seja a primeira pergunta – questionou ele, enfim.
— Sim – respondi em meio a soluços.
— Leio FC desde garoto e muitas vezes tive a sensação de que era a única pessoa que gostava daquilo. Tive meia dúzia de amigos que compartilharam esse gosto antes que, por volta de 1986, eu conhecesse o pessoal do CLFC através de Roberto Nascimento. Somente então comecei a escrever contos de FC a sério, mas nesse tempo eu já era um autor publicado. Tinha lançado vários livros de poesia, e publicado muitos contos – fantásticos ou mainstream – em revistas e suplementos literários. E já tinha publicado, em forma de cordel, um dos meus livros mais bem sucedidos comercialmente até hoje, A Pedra do Meio Dia ou Artur e Isadora, que é de 1979.
Braulio parou por alguns instantes para esfregar os olhos, recolhendo uma leve umidade que ia se insinuando. Engoliu em seco algumas vezes, franziu o cenho, respirou fundo e continuou.
— O CLFC me deu o que eu sempre precisei: alguém com quem conversar sobre a FC, trocar idéias, trocar livros, indicar autores, pescar informações. Sem minha filiação ao CLFC e sem a chance de publicar no Somnium eu não teria escrito os contos da Espinha Dorsal da Memória, que ainda considero juntamente com Mundo Fantasmo, que é uma espécie de expansão dele, meu melhor livro.
Parou de novo, enfiou uma das mãos no bolso em busca de um lenço. Tirou de lá uma cambraia. Junto veio um pedaço de papel.
— Por outro lado, nunca tive o propósito de me especializar em FC, de “ser um escritor de FC e ponto final”. Ainda hoje, por exemplo, lamento muito nunca ter escrito contos policiais, tarefa para a qual me acho igualmente bem preparado. Tenho vontade de – e idéias para – escrever muitos livros mainstream, além de poesia, teatro, terror… Não quero me prender a um tipo de literatura, por mais que goste dele.
Passou o lenço nos olhos marejados, assoou o nariz. Seu olhar buscou o exterior. As ruas movimentadas, sombras de gente se movendo nas calçadas. Suas mãos entrelaçaram-se e apertaram-se de tal forma que os nós dos dedos embranqueceram. Ergueu a cabeça um pouquinho tentando demonstrar controle de si mesmo, mas logo a tombou, vencido pela prostração.
— Mantém-se acalorada uma discussão sobre literatura realista e literatura de gênero; onde cada uma pode beber na fonte da outra. Qual é a sua visão sobre a questão?
Braulio largou o lenço sobre a mesa. Pegou o pedaço de papel que saíra junto com ele quando o tirou do bolso, tomando-o nas mãos. Pigarreou duas vezes, o abriu ligeiramente, leu o que continha, e voltou a fechá-lo.
— Eu vejo a literatura como uma coisa multiforme. Para mim é como a música. Eu ouço samba, rock, forró, blues, música clássica, jazz… – ó Deus, haverá música nessa terra de miseráveis? – Não direi que gosto de qualquer estilo ou de qualquer artista – sou até meio exigente –, mas gosto de ouvir coisas muito diferentes entre si, ver as possibilidades infinitas de combinar notas, timbres, ritmos, harmonias, vozes, letras… Isso me deleita; ser capaz de perceber a grandeza artística de Miles Davis e de Adoniran Barbosa, a de Tom Waits e de Chopin. Todos diferentes e todos geniais.
— Músicas fúnebres, talvez – respondi à sua inquietação.
— Essas pessoas estão vivas… Mas também estão mortas. Logo também morreremos se continuarmos aqui.
— Literatura é a mesma coisa – continuou – Graciliano Ramos é tão grande quanto Harlan Ellison, que é tão grande quanto Borges, que é tão grande quanto Clarice Lispector ou Conan Doyle. Opor o realismo à FC é como opor o jazz aos Beatles. Para mim, não faz sentido. Não se excluem, se completam mutuamente. Eu vejo que muitos leitores veem a literatura como uma espécie de política onde você é “partidário” de “A” e consequentemente deve ser adversário de “B” e “C”. Eu não vejo isso. Minha visão de literatura é como um conjunto de experiências estéticas, e não como uma arena de disputas políticas ou de mercado.
Rendi-me ao copo. Bebi um gole tímido, experimentando o líquido cinza.
— Cerveja, mesmo – tartamudeei constrangido.
Braulio observou o copo como quem tem um espécime raro diante de si. Depois voltou a abrir o papelote que segurava. Observou-o mais um pouco.
— Será que existe poesia nessa terra de desvalidos? – perguntou, olhando ao redor com visível abatimento.
— Você acha que ainda temos muito que aprender com autores anglo-saxões, ou o Brasil já caminha com pernas próprias?
— Temos a aprender com todo mundo, e o que talvez seja um defeito nosso – meu, inclusive – é que só bebemos das fontes anglo-saxãs. Eu leio pouquíssima FC francesa, creio que nunca li FC italiana ou espanhola, li uma dúzia de livros de FC russa, não tenho idéia do que é a FC holandesa, alemã, tcheca, indiana… Alguém pode dizer que esses países não têm nada de muito bom para oferecer e se tivessem já saberíamos, mas então o mesmo se aplica ao Brasil.
— Amo-te tanto, meu amor… não cante
O humano coração com mais verdade…
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.
Ouvi o verso, proferido ao fim de sua resposta. Surpreendi-me com ele. Braulio leu a primeira estrofe e se calou. O semblante fechado numa argamassa de concreto. Mas foi possível ver um pequeno lampejo de luz que escapou de seus olhos embaciados.
— E ainda assim – continuou ele, tentando vencer a prostração – de vez em quando surge um nome isolado nessas literaturas não-anglo-saxãs, como surgiu Stanislaw Lem na Polônia, os irmãos Strugatsky na URSS e agora Zoran Zivkovic da Croácia. Talvez se déssemos mais atenção a esses autores ficássemos mais perto de descobrir a linguagem de uma FC brasileira, porque veríamos uma porção de elementos que são estranhos à FC americana-britânica, elementos que podemos considerar contribuições próprias daqueles povos.
— Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.
O garçom olhou para nós. Dois frequentadores, também. Pareciam preocupados. Levei um susto quando vi o copo de cerveja exibindo uma coloração dourada. Meus lábios se crisparam num sorriso doloroso e assustado.
— Por outro lado, a criação de um caminho brasileiro só pode se dar, obrigatoriamente, no momento da escrita, e não da leitura. Eu hoje já li muitíssimo mais FC do que tinha lido em 1988 quando escrevi A Espinha Dorsal da Memória, mas não acho que hoje estou mais bem preparado do que então. Respondendo mais objetivamente a pergunta: temos que aprender com todos os países, mas só teremos o que ensinar a eles se a FC e a literatura brasileira mainstream forem vasos comunicantes.
— Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.
E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.
O garçom levou ambas as mãos à cabeça. Seu olhar estava aterrorizado. Um dos frequentadores saltou da banqueta em que estava sentado e se dirigiu para a rua, como se estivesse em fuga. As cores iam se alastrando lentamente a partir do copo de cerveja, tingindo a mesa. Olhamo-nos aturdidos. Mas em nossos olhares se revelou a verdade. Arrebatado por uma espécie de loucura, Braulio ergueu ambas as mãos espalmadas ao alto, e riu. Voltou a poetar:
— De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Os versos iam sendo despejados. As cores se alargavam cada vez mais. O garçom gesticulava, indicando-nos que aquele tipo de manifestação era terminantemente proibido, tentava a todo custo conter a fúria poética de Braulio, mas ninguém, aparentemente, teria poder para isso naquele momento.
Foi quando ouvimos o que parecia ser um bater de início ritmado, mas que logo se tornou caótico. Olhamos para fora e vimos a cidade mergulhar numa espécie de frenesi de insanidade. As pessoas corriam de um lado ao outro, contorciam-se em desespero. O trânsito mergulhou num caos de batidas, de buzinaços, de estertores. O garçom largou tudo e disparou para a rua. Braulio se aquietou, perplexo e assustado. Olhávamos o exterior através da janela, rodeados por cores vivas. Mesas, cadeiras, balcão. Geladeiras, caixa registradora, estufas. Tudo colorido. O luminoso piscava suas lâmpadas multicores anunciando para a cidade o Bar do Mané.
Vimos também pernas de pau. Muitas. Encimando-as, figuras surpreendentes. Eram palhaços. Dezenas deles. Centenas. Talvez milhares. Vinham de todos os lados, de todos os lugares. As pernas de pau tão altas que vergavam a cada passada. Suas faces pintadas exibiam não a máscara da alegria, mas carrancas malignas. Expressões de profundo ódio e olhares raivosos. Roupas bufantes cujas cores vivas e contrastadas com as da cidade não tinham como nos enganar. Não eram mesmo mensageiros de felicidade. Avançavam como guardiões da tristeza, soldados do terror.
Eu apertava o botão do relógio, mas sabia que havia ainda uma pergunta. E ela precisava ser feita. Lançamo-nos para fora do bar. Foi como dar de cara dentro de um bambuzal. Vimos pessoas transpassadas pelas varas, crianças abandonadas, chorando. Mães ignorando a dor dos filhos, se refugiando nos cantos, se encolhendo apavoradas. Homens desesperados, implorando clemência enquanto eram atingidos, feridos, mortos pelas varas que iam surgindo numa onda avassaladora.
— Noto em certos círculos um desdém com o que foi escrito em nosso passado – passado muitas vezes bastante imediato – ignorando o trabalho de autores que foram nossos predecessores. Você concorda que o que passou, passou e o que vale é o agora e o amanhã?
Minha pergunta por pouco não se perdeu na azáfama. Braulio agitava o pedaço de papel no ar, expressão insana, provocando os palhaços que nos cercavam batendo as pernas de pau no chão, rilhando os dentes e murmurando um zum-zum-zum assustador. Corremos para trás de um caminhão cinza, acotovelando-nos com uma pequena multidão que se espremia ali.
— Vivemos um momento cultural, no mundo inteiro, que eu definiria como A Onipresença do Presente. O momento presente está sufocando nossa capacidade de pensar o passado e de pensar o futuro, porque a quantidade de informação sobre a hora presente, o dia presente, a semana presente, etc., é aterradora…
Ele ia respondendo na mesma medida em que íamos sendo expulsos do agrupamento. Não nos queriam ali. Temiam-nos, nos odiavam.
—… Redes sociais como Facebook, Twitter, etc., não são mais do que a exacerbação desse processo. É possível passar uma hora inteira apenas lendo o que aconteceu no mundo durante os últimos 60 minutos. Quando se acha que isso é a coisa mais importante, como ter interesse em ler um livro de 10 anos atrás, de 20, de 50, de 100 anos atrás?
Excluídos do esconderijo que, afinal, nem era tão bom assim. Corremos pela rua, driblando o caos e evitando as pernas de pau que tentavam nos cercar, diminuindo nossos espaços.
— Atualidade de informação está virando sinônimo de qualidade de informação – gritou Braulio tentando se fazer ouvir em meio ao alarido geral e ao bater de paus –, pior que isso: está virando a definição oficial de qualidade. Informação boa é informação presente. Devido a isto, estamos perdendo a visão diacrônica (de enxergar os fatos num eixo histórico, num antes-e-depois que se estende no Tempo, ao longo de anos ou séculos) e sendo capazes apenas de ter uma visão sincrônica, de enxergar o que está acontecendo aqui-e-agora num presente que, dependendo das circunstâncias, pode ser contraído em minutos ou expandido em meses, mas continua a ser “o Presente”, o momento do tempo em que acontecem as coisas realmente importantes. É para isto que estamos caminhando.
Contornamos uma montanha de escombros formados por veículos virados, pessoas feridas e estendidas no chão, gementes e agonizantes. Viramos à esquerda numa rua e demos de cara com uma infinidade de paus que vinham. Atrás de nós outra onda se aproximava. Estávamos, afinal, cercados.
Braulio voltou a agitar o papelote e bradou ameaças antes de voltar a poetar as estrofes certamente decoradas.
— Sou Paul Bunyan e vou arrancar essa floresta de varapaus da cidade, devolvendo a ela a alegria de viver!
— Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
Cercados. Enrodilhados. Lentamente esmagados.
— E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
A voz já quase sumida, sufocada pelas grades.
— Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
Então um torvelinho de força irresistível ergueu palhaços com suas pernas de pau. Ergueu cidadãos e carros e latas de lixo e placas e jornais e crianças e cachorros. Ergueu a cidade, arrancando-a de suas fundações. O mundo todo de ponta cabeça. Ergueu a nós, lançando-nos ao ar, rodopiando. Mas não pela ameaça de um gigantesco machado a varrer o emaranhado de paus. Nem pela aparição – que não houve – de um boi azul furioso.
A poesia manejava um milagre.
As cores explodiram primeiro num clarão súbito, manchando céu e terra com tonalidades bizarras. Logo se estabilizaram, mesclando-se de tal forma que todas as nuances que se formaram cobriam as coisas, dando-lhes a cor que deveriam ter.
Braulio ainda agitava o papelote, estrebuchando de tanto rir. Agarrava-se ora em uma, ora em outra perna de pau, puxando-as todas, a espevitar os palhaços, cujas carrancas haviam se dissolvido e revelado olhares de pânico e incompreensão.
Assustado com o andar das coisas e certo de que tudo que vai ao ar logo volta a terra, apertei o botão.