Conheci os primeiros contos de Renato Cunha quando li e comentei a antologia UFO – Contos não identificados. Foram dois no mesmo volume e conseguiram arrancar de mim um UAU e um BOM. Foram Foo Fighter e Green Flash. Fiquei impressionado especialmente com o primeiro e acabei criando fortes expectativas em relação ao autor e ao seu trabalho. Mas a leitura acabou e o tempo passou até que fui contatado por ele, perguntando-me se havia interesse na leitura de sua antologia publicada pela Multifoco, Homens sem rosto. A muito boa impressão causada anteriormente só me fez dizer que sim.
A capa não surpreende. Parece mais um “copia-cola” tradicional. O conjunto de contos merecia uma capa mais caprichada.
São 13 contos de terror que surpreendem. E surpreendem MESMO.
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1- Homens sem rosto
Homem desesperado registra em seu diário a história dos dias que antecedem o momento presente e o faz com a certeza da morte eminente. Oficial da Marinha de El-Rei de Portugal, em 1880, recebe a incumbência de conduzir um novo faroleiro e sua família a um farol onde fatos misteriosos ocorreram e permanecer ali por tempo indeterminado realizando investigações.
É necessário que tente descobrir como e porque os antigos moradores da ilha, zeladores do farol, desapareceram misteriosamente.
A história é primorosamente narrada, num vocabulário próprio à época e encanta pela precisão. O autor demonstra toda a intimidade que tem com relatos náuticos e dá ao leitor uma história com bom ritmo e boa medida de suspense. O envolvimento do protagonista com a família e com os fatos que lentamente vão se sucedendo é firme e seguro.
Incomoda-me, por outro lado, o autor ter revelado prematuramente a natureza do terror que assola a ilhota. O suspense poderia ter se mantido por mais tempo, aumentando com isso a ansiedade e a expectativa do leitor. Mesmo assim, o conto cumpre com seu objetivo. É muito bem contado e provoca arrepios. MUITO BOM.
2- Extravagance em sang
Homem possui fascínio pela morte, executando-a das maneiras mais bizarras e assustadoras. Comecei o conto sentindo profundo incômodo. Um incômodo que quase se traduziu em dor.
“Talvez tenha sido quando matei minha irmã mais nova, então com nove anos de idade. Não consigo me esquecer da inebriante sensação de sentir seus ossos lentamente esmagados sob a enorme pedra com a qual lhe moía o crânio, fazendo um barulho levemente crocante, tão ao gosto das crianças. Talvez tenha sido sua confiança inocente em me seguir até o local de sua execução, alegre, mal suspeitando de seu destino. Ou talvez tenha sido seu último olhar atônito para mim o que coroou, como um violento orgasmo, todo o esforço frenético que fazia para dar cabo de minha tarefa”.
Esse trecho inicial me deu uma pista bastante clara do que provavelmente viria a seguir. O protagonista se esforça ao máximo para superar cada assassinato, cada obra que assina com a execução artística de um gênio psicopata. Mutila corpos, os reconstrói como uma espécie de doutor Frankenstein, alucinado, embevecido.
A leitura avançou bem até que o autor incluiu nele outros elementos, chamados de “Povo da noite”. O que vinha num ritmo assustador, agregando terror, diluiu-se quando da inserção desses novos personagens. Houve desvio no foco e eu, enquanto leitor, vi-me dividido nas atenções. Isso me fez perder o sentimento de atrocidade que o protagonista tão eficazmente cinzelou em minha alma.
Esses novos elementos se revelam vampiros e o protagonista é transformado, como não poderia deixar de ser (previsibilidade que sempre arrefece a narrativa). Se o autor tivesse mantido a história centrada no personagem, sem acréscimos, ela teria sido muito mais impactante. Apesar dos pontos que me foram negativos, o conto me agrediu como poucos o conseguiram até hoje. MUITO BOM.
3- A mão decepada
A história ocorre em 1943, Alemanha nazista, Segunda Guerra Mundial.
Fotos mostram grupo de soldados acompanhando eventos bélicos pelo mundo, através de gerações e flagrados pelas lentes de fotógrafos amadores ou profissionais. Sempre o mesmo grupo, e sempre rodeados por uma estranha aura.
Soldado alemão da ABWEHR, setor de inteligência militar, resolve investigar esse mistério para tentar descobrir quem são esses homens.
O autor narra de maneira bastante convincente o cenário de guerra, demonstrando possuir ótimos conhecimentos históricos. Tira o protagonista da retaguarda e o leva para o front, numa busca perigosa que acaba revelando algo absolutamente assustador.
Os fatos são pouco a pouco apresentados, desta vez mantendo-se o clima de suspense até próximo do fim. BOM
4- A arma secreta
Grupo de mergulhadores descobre velho submarino alemão naufragado na costa da Bahia. Entusiasmam-se com o achado, perplexos por estar em águas tão rasas e anseiam explorá-lo em busca de possíveis riquezas quando são abordados por um homem que sabe da descoberta e oferece ajuda na exploração. Nesse esforço, são trazidos mais dois homens, especialistas em achados nazistas navais. Acabam por se mostrar mais interessados pelo submarino do que faria supor a mera curiosidade de investigadores. Em vez de ouro ou jóias, encontram caixas metálicas hermeticamente fechadas que escondem segredos terríveis.
Acho particularmente fascinante o domínio que o autor possui das narrativas náuticas, sendo eu mesmo um admirador do gênero. O ritmo de descobertas, investigações, mergulhos, riscos, perigos é habilmente manejado, mesmo que a ideia e a conclusão não sejam originais.
BOM.
5- Mamãe
Homem atormentado pela dúvida de ser ou não pai legítimo e acossado pelo passado sombrio de sua família, resolve visitar a mãe cuja doença a afastou do convívio social e provocou o suicídio do pai. Ele, sua mulher e “filho” saem de madrugada rumo à fazenda onde se encontrarão.
Conto de terror que me fez lembrar Stephen King. Estilo próprio do estadunidense, condução hábil. Final aterrador que me causou calafrios. Um dos melhores contos do livro. UAU.
6- A reunião
Japonês sobrevivente da segunda guerra mundial onde teve amigos e mestres que muito o honraram se prepara para um importante ritual que permitirá que volte a encontrá-los e, com eles, refazer os importantes laços de amizade que tinham no passado.
Esse é até agora o único conto que não é de terror. Fala de amizade, senso de dever e honra. Dedicado aos valorosos guerreiros kamikazes, que mesmo às portas de uma derrota humilhante, entregaram-se de corpo e alma ao que eles consideravam certo, em defesa de seus ideais, de suas tradições e de sua cultura.
Um conto pungente que aborda aspectos culturais absolutamente incompreensíveis aos olhos de um ocidental. MUITO BOM.
7- A experiência
Grupo de cientistas se debruça sobre um novo experimento que arrisca lhes escapar ao controle. Ante a possibilidade desse grupo de bactérias se alastrar e infectar outras culturas, o reitor da universidade onde ocorrem as experiências resolve chamar um cientista que fora expulso em outros tempos por desafiá-lo ao não concordar com aquele experimento. Ele traz consigo a solução para o problema num projeto intitulado Armageddon.
Analogia que trata Deus e seus anjos como cientistas numa realidade alterada. O conto é curioso, engraçado mas não arrebatador ou surpreendente já que “brincadeiras” parecidas já apareceram por aí, com as mesmas analogias ou muito próximo delas. É um conto que destoa das demais até aqui. MÉDIO.
8- Plutão
Homem que teve a família morta num acidente de carro permanece no cemitério chorando as mágoas e ruminando sentimentos de raiva e vingança contra o mundo e contra as pessoas que o levaram a essa perda. Ao sair do cemitério, encontra um enorme cão preto que passa a segui-lo. Ele o recebe, aceitando-o como se fosse seu, apega-se a ele redirecionando seus sentimentos ao cão, usando-o como substituto aos entes perdidos. Mas vislumbres do acidente que surgem durante um sonho, mostrando os responsáveis indiretos pelo acidente o despertam para a verdade. Fazem-no realimentar a raiva e o ódio.
Uma a uma daquelas pessoas aparecem mortas, destroçadas, desfiguradas terrivelmente.
Seria o cão negro a quem dera o nome de Plutão, responsável por isso?
O conto caminha por rumos previsíveis e desemboca na imprevisibilidade com um final surpreendente. BOM.
9- Sha-sha
Conto curto que fala sobre menina perdida nas ruas, esfomeada, que procura por abrigo e calor humano. Angustiada, aproxima-se de uma casa que já vira antes e onde dois jovens garotos já dormem. Trepa pela parede subindo ao andar superior, bate na janela do quarto até que o mais velho deles a veja. Seduzido pela aparência de beleza doce e cândida, não resiste e permite que ela entre. Os três brincam bastante até que memórias antigas e sombrias lhe saltam na memória e uma fome animalesca lhe rouba o discernimento.
Descontando a embalagem caprichada, a história não nos traz nenhuma nova abordagem, apresentando o vampiro como o ser que precisa ser convidado para entrar na casa e fazer dela o seu restaurante, que ataca jugulares, que tem caninos proeminentes, que destroça e mata e consome sem remorsos em busca da satisfação de sua fome.
No início pensei se tratar mesmo de uma boneca que, por algum artifício mágico e desconhecido, ganhara vida e perambulava pela cidade em busca de amor, afeto, calor humano. Não era. O autor consegue dar sentimentos contraditórios à protagonista; que exigem a satisfação da fome e que também exigem lembranças doces do seu passado, numa tentativa de levar uma vida comum, suave. Trata-se de certo aprofundamento de personagem, criação de conflitos internos, nas pouquíssimas páginas do conto. Louvável e que teria sido muito melhor explorado tivesse a história umas vinte páginas a mais. Por isso e pela prosa: BOM.
10- Symphonie fantastique
Vendedor em retorno ao lar dirige durante a noite em uma estrada solitária e conhecida, embalado por uma seleção de músicas clássicas. Súbito, se dá conta de que ninguém o ultrapassara nas últimas horas e nem a ninguém pedira passagem. Perplexo, percebe que aquela estrada nada tinha a ver com a que costumeiramente transitava.
O looping que o obriga a dirigir sem parar e sempre voltando ao ponto de partida se mostra eficazmente assustador. A inclusão de outros elementos, estranhos seres que surgem ao longo da estrada, caminhando ao largo dela, aumenta a tensão e o terror. MUITO BOM.
11- Fome
Caminhoneiros enfrentam as duras condições das estradas por caminhos ermos do sertão. Um pneu furado os faz conhecer uma estranha mulher e moradores da região que buscam um devorador de vísceras de animais, chamado por eles de Chupa-cabra. Embora o conto indique uma pretensa previsibilidade, o autor consegue surpreender dando ao rumo da história uma solução surpreendente.
Fica claro desde o inicio que a mulher é a chave da história, só permanece em brumas como ela interfere nos fatos. A mudança de cardápio do ser fantástico que progride da carne animal para a carne humana serve para aumentar a carga dramática e elevar a expectativa. A solução encontrada para explicar de onde o ser vem e para onde ele vai ao final de uma refeição assusta e é extremamente perturbadora. MUITO BOM
12 – Paraíso
Executivo aborrecido com a rotina de uma reunião de negócios na empresa em que trabalha, perde-se em divagações ao observar um quadro na parede onde um antigo projeto dessa empresa seria realizado. Mata verdejante, uma lagoa aprazível e uma estrada que ele jurava não estar ali antes. Com o passar do tempo descobre-se cada vez mais encantado com o lugar e passa horas imaginando como seria bom nadar no lago e descansar à sombra das árvores que a rodeiam. Mas a presença da estrada de terra o intriga a ponto de inquirir um amigo sobre a existência dela que, aparentemente, nem deveria estar lá. Com o mistério não resolvido e a vontade de estar lá amplificada, resolve visitar o lugar, escapando do trabalho por um dia inteiro. Os acontecimentos que se seguem mostram que precisamos ter muito cuidado com nossos desejos. Trata-se de um conto interessante, mas não arrebatador. Boa leitura, mas previsível suficiente para levar só um MÉDIO.
13 – Sobre caçadores e presas
Uma ordem antiga de caçadores de vampiros vê-se à beira da transmissão de cargo do caçador que está às portas da morte ao jovem neófito arduamente treinado. O velho e alquebrado caçador, cujas moléstias do corpo levaram-lhe a saúde e ambas as pernas, está certo de que uma antiga promessa será levada a cabo e que seu mais terrível inimigo, Albuquerque, virá para matá-lo. Entabulam então, o velho e seu fiel ajudante, o homem que o acompanhara ao longo dos anos e que conduzira o jovem àquela reunião de transmissão, um plano para derrotar o vampiro.
Trata-se de um historia sem atrativos maiores, já que narrativas vampirescas dificilmente conseguem surpreender. Criou-se certa expectativa na construção do cenário que remonta ao século XVIII, na tessitura dessa ordem, na sua ação ao longo do tempo, mas o conto é curto demais para que essas particularidades sejam suficientemente exploradas. MÉDIO
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Homens sem rosto é uma reunião de contos de terror que foge do clichê tradicional, foge da mesmice, e que obtém conjuntamente uma média final muito boa. O autor demonstra possuir ótimo conhecimento de técnicas narrativas e imprime um ritmo cativante nas histórias. Além de provocarem sustos e inquietantes momentos de perturbação, os contos encantam pela prosa.
As narrativas com ambientação náutica são particularmente fascinantes.
Identifico em seu estilo traços dos autores contemporâneos Stephen King, Neil Gaiman e Clive Barker, dos póstumos Edgar Alan Poe e Lovecraft (o autor declara também E. T. A. Hoffman como uma de suas referências). Há nas histórias um sabor estadunidense marcante, embora sejam ambientações bem nacionais.
Homens sem rosto foi uma das melhores leituras que tive nos últimos meses e mostra que é possível escrever boas histórias de terror sem o uso abusivo de clichês. Inteligência é tudo. MUITO BOM
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Homens sem rosto
Renato G. Cunha
Selo Spectrum da Editora Multifoco
1ª Edição – 2010